Passada mais de uma década da privatização da Companhia Vale do
Rio Doce (CVRD), podemos comprovar que muitas inverdades foram ditas: as
reservas minerais da Vale foram avaliadas abaixo de seu valor real;
outras sequer foram computadas, assim como a infra-estrutura ferroviária
e portuária; e o preço da venda mal atinge dois meses do lucro que a
empresa tem hoje.
Em 8 de maio de 1995, a Vale informou à Securities and Exchange
Comission (SEC), organismo que fiscaliza o mercado acionário nos Estados
Unidos, que suas reservas lavráveis de minério de ferro no Sistema Sul
(grosso modo, Minas Gerais) contabilizavam 7,918 bilhões de toneladas.
Só que, na hora de fazer o edital da venda, em 1997, constavam menos de
sete vezes esse montante, aproximadamente, 1,4 bilhão de toneladas.
No Sistema Norte (Serra de Carajás, no Pará), a operação efetuada foi
semelhante. De acordo com o apresentado à SEC em 1995, as reservas de
minério de ferro totalizavam 4,97 bilhões de toneladas. Já no edital de
privatização: 1,4 bilhão de toneladas.
Além disso, outras reservas nem foram consideradas. De acordo com uma
pesquisa da Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe- UFRJ), ficaram de fora as
reservas de titânio, calcário, dolomito, fosfato, estanho, cassiterita,
granito, zinco, grafita e nióbio.
E não foram apenas minérios que foram “esquecidos” na privatização.
Ficaram de fora as contas de 54 empresas em que a Vale operava
diretamente, como coligada ou controladora. Dentre elas estão a
Açominas, a Companhia Siderúrgica Nacional, a Usiminas e a Companhia
Siderúrgica de Tubarão. Duas ferrovias (a Belo Horizonte-Espírito Santo e
a Carajás-São Luiz, totalizando 9 mil quilômetros de extensão) e
terminais portuários ficaram de fora do valor que foi a leilão, assim
como o capital tecnológico e intelectual da Docegeo (uma empresa de
exploração mineral).
Ameaças à soberania
A privatização inclusive atenta contra a Constituição Federal.
Reservas de urânio (matéria-prima para a energia e armas nucleares) são
de propriedade exclusiva da União e não poderiam ter sido vendidas. Já a
exploração mineral na faixa de fronteira não pode ser realizada sem uma
aprovação do Congresso Nacional – que não ocorreu.
A venda da Vale também compromete a soberania do Brasil ao transferir
para acionistas estrangeiros 26 milhões de hectares de terra. De acordo
com o Código Penal Militar, é proibido a não-brasileiros possuir mais
de dois mil hectares de terra, sem a aprovação do Senado e das Forças
Armadas, o que também não aconteceu.
Maior da América Latina
Ironicamente, não há ninguém melhor para resumir as falcatruas que
envolveram a privatização da Vale do que Fábio Barbosa, atual diretor
executivo de finanças da Companhia. Em março de 2005, ele foi à imprensa
comemorar um feito: a Vale se tornava a maior empresa da América
Latina, com um patrimônio estimado em 40 bilhões de dólares (R$ 75
bilhões).
Essa quantia é 12 vezes mais do que o arrecadado pela venda, em
dólares, e 23 vezes superior quando tomamos o valor da privatização em
reais. À época, a União arrecadou R$ 3,3 bilhões (era a mesma quantia em
dólares, já que as moedas se equivaliam em 1997).
Para chegar a esse número fantasioso, o artifício empregado pelo
governo foi calcular o lance mínimo para o leilão com base no preço da
ação no mercado multiplicado pelo número total das ações colocadas à
venda. Todo o restante do patrimônio (incalculável – estudos
independentes estimam que possa chegar a R$ 1 trilhão, valor semelhante a
toda a dívida pública brasileira) ficou de fora.
As mentiras da privatização
A nação brasileira passou 55 anos construindo o patrimônio da
Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). Foi então que, em 1997, o
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) resolveu atender,
mais uma vez, às exigências do capital e vender a Vale.
A cúpula tucana tinha na ponta da língua uma justificativa baseada
naquilo que veio a ser um programa de governo: as privatizações como
política fiscal. Qual era o raciocínio? A dívida pública do Brasil –
interna e externa – estava muito elevada e isso reduzia a capacidade de o
Estado investir. Logo, disseram os tucanos, a solução era leiloar as
estatais e, com a verba arrecadada, amortizar algumas parcelas dessa
dívida.
Além disso, dizia o governo FHC, essas empresas eram muito onerosas
para o Estado. O discurso era, mais ou menos, assim: se as vendermos,
terão uma gestão mais eficiente – a qual só pode ser feita sob o comando
privado – e, assim, vamos reduzir gastos e,conseqüentemente, impostos.
No entanto, em que pese a ingenuidade de acreditar nessas palavras, a
distância entre a fantasiado discurso e a frieza dos números se mostrou
um abismo. O Programa Nacional de Desestatização (PND), durante o
governo FHC, conseguiu vender 70% das estatais brasileiras e arrecadou
aproximadamente R$ 60 bilhões. Esse valor correspondia a mais da metade
da dívida pública interna no início do governo de Fernando Henrique, R$
108 bilhões. Mas, ao final do segundo mandato tucano, o dinheiro
arrecadado com os leilões não passava de um décimo da dívida interna, a
qual disparou para R$ 687 bilhões. Com o endividamento externo, a
situação foi parecida. De 148,2 bilhões de dólares em 1995, a dívida
passou a ser de 227,6 bilhões de dólares em 2002.
Justiça pode anular leilão
A grande quantidade de irregularidades da privatização da Vale do Rio
Doce despertou uma forte reação da sociedade. Antonio Carlos Spis, que
era da direção da Federação Única dos Petroleiros (FUP), recorda o dia
da privatização. “Conseguimos uma liminar impedindo a realização do
leilão, enquanto as bombas já eram remetidas contra os manifestantes. Só
que, na hora de entregá-la ao juiz de plantão, nossos advogados não
conseguiram encontrá-lo. Houve tanta malandragem que o próprio
Judiciário participou da quadrilha que entregou a Vale. O juiz só
apareceu depois do leilão”, protesta.
No entanto, além das ações judiciais que tentavam impedir a
realização do leilão, outras 104 questionam a privatização. Pode parecer
algo distante, mas a possibilidade jurídica de anular o leilão é real.
Dessas 104, o Judiciário reabriu, em 2005, 69. A decisão veio do
Tribunal Regional da Primeira Região, em Brasília (TRF-1), que
considerou que haviam sido julgadas sem mérito essas 69 ações populares
questionando o edital do leilão e a venda da Vale.
Portanto, receberiam uma nova apreciação, baseada em perícia. Neste
exato momento, as ações aguardam análise do Superior Tribunal de Justiça
(STJ), em um embate jurídico que foi retomado e que não pode ficar sem a
pressão popular para conseguir seu êxito.
Um bom negócio para os ricos
A Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) sempre foi lucrativa. Estimativas
indicam que, antes da privatização, seus dividendos giravam em torno de
R$ 1 bilhão. Sendo assim, nos três anos após à venda da Companhia, seus
novos controladores conseguiram recuperar o dinheiro investido na
aquisição (R$ 3,3 bilhões) e ainda tiveram uma sobra de R$ 1,1 bilhão.
Entre 1998 e 2000, os lucros da Vale totalizaram R$ 4,413 bilhões.
A partir dessa década, os lucros da Vale deram saltos. Paulo
Passarinho, coordenador geral do Sindicato dos Economistas do Estado do
Rio de Janeiro (Sindecon), explica isso ocorreu em função da elevação
dos preços do minério de ferro no mercado internacional. Dessa forma,
entre 1998 e o primeiro semestre de 2007 os lucros da Vale somaram R$
50,456 bilhões, sem contar a inflação.
Considerando que, antes da privatização, a União possuía cerca de 20%
do capital total da empresa, isso significa que o Estado brasileiro
deixou de arrecadar R$ 10,091 bilhões apenas com os lucros da Companhia.
O que o povo perdeu
Se a privatização não tivesse sido feita, veja o que o governo
poderia fazer com os R$ 10,091 bilhões a que teria direito sobre o lucro
da Companhia Vale do Rio Doce:
167 hospitais
Similares ao de Cidade Tiradentes, em São Paulo, com 27 mil metros quadrados e capacidade para atender 25 mil pessoas por mês
202 mil casas populares
Moradia de baixo custo orçada em R$ 50 mil
1.627.580 assentamentos rurais
De acordo com o Plano Nacional de Reforma Agrária
68 universidades
Orçamento da Universidade Federal do ABC (região metropolitana de São
Paulo), que atenderá a 17 mil alunos e empregará 272 professores.
Fonte: Luís Brasilino, Brasil de Fato Especial